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Sobre Arte e Ciência

Os campos da arte e da ciência são antagónicos ou complementares? Partindo da premissa principal da mais famosa obra de Milan Kundera, procuramos, com leveza, responder a esta questão.                                                                                                            

Se a cada uma das perspetivas de conduta exploradas por Milan Kundera em A Insustentável Leveza do Ser tivéssemos de associar as etiquetas "Arte" ou "Ciência", a primeira caberia à via da leveza e a segunda à do peso. A arte - a verdadeira arte criadora - é um atributo do espírito livre. "O artista deve dominar as suas ferramentas mas não ser seu escravo", disse Rodin. Por outras palavras, para a arte se manifestar através do Homem, este não pode estar oprimido pelas cadeias da racionalidade. A ciência requer método; a arte, liberdade.


Rodin no seu atelier
Deste pressuposto nasceu a noção de que arte e ciência se situam em campos opostos. E que uma exclui necessariamente a outra quando se trata de alcançar resultados significativos nas respetivas áreas. A própria obra de Kundera, inspirada na conceção nietzschiana de eterno retorno, exprime essa inconciliabilidade. Para Nietzsche, a arte era um forma de iludir momentaneamente a opressão das responsabilidades, um meio de escapar ao peso de uma vida conscienciosa: "Temos a arte para não morrer da verdade".


Mas esta é apenas uma forma de encarar as coisas. Os autores deste blogue, tal como se afirma no artigo inaugural, acreditam que é possível ter, para expressar a ideia em bom português, "sol na eira e chuva no nabal". Ou seja, o melhor de dois mundos. Arte e ciência podem não andar sempre de mãos dadas mas são faces da mesma moeda. Num dado indivíduo poderá existir a propensão para a manifestação de um espírito mais científico que artístico e vice-versa. Mas é no encontro das duas tendências - e não na sua mútua exclusão - que, nas palavras de António Gedeão, o mundo "pula e avança". 

Newton arquitetou a teoria da gravidade enquanto observava casualmente uma maçã cair de uma das árvores do seu jardim. Ada Lovelace lançou as bases do primeiro algoritmo para computador ao fazer algumas anotações complementares a uma tradução, valendo a pena lembrar que esta pioneira da matemática cultivava uma pessoalíssima conceção de "ciência poética". E outros exemplos poderiam ser alinhados para ilustrar que é quando o cérebro está distraído que os avanços científicos se revelam.

O jardim onde Isaac Newton intuiu a lei da gravidade


Desenho de Leonardo da Vinci
De igual forma, um pintor demasiado circunscrito pelas normas académicas poderá ser um exímio reprodutor da realidade, mas nunca revelará à humanidade um novo caminho a seguir. Mais de quinhentos anos separam Leonardo Da Vinci e Carl Sagan, mas ambos veicularam a ideia de cumplicidade entre arte e ciência. Para o paladino do espírito renascentista, a arte detinha até uma primazia sobre a ciência, pois considerava-a "a rainha de todas as ciências"; o cientista americano, por seu lado, não ia tão longe, mas afinava pelo mesmo diapasão: "a ciência é uma forma de arte". 

E na literatura? Basta lembrar os versos de Camões na introdução d'Os Lusíadas, onde o poeta evoca o engenho E a arte como as condições necessárias ao sucesso da sua empresa. Ou os heterónimos pessoanos, faces tão diversas de uma mesma personalidade, ora de uma leveza sóbria (Alberto Caeiro), ora procurando exorcizar o peso existencial (Álvaro de Campos). Ou ainda, convivendo de forma mais harmoniosa, o cientista Rómulo de Carvalho e o supracitado poeta António Gedeão, com cuja Pedra Filosofal terminaremos este artigo, avançando antes com uma conclusão especulativa sobre o que aqui ficou escrito: arte e ciência são ambas ciências até se entregarem à intuição; aí passam ambas a ser arte.

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

In Movimento Perpétuo, 1956

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