Portugal teve um papel preponderante na divulgação da porcelana chinesa no mundo. Neste artigo acompanhamos a viagem desta requintada forma de arte, desde a tecnologia que a originou ao valor cultural que hoje tem.
A tecnologia ao serviço da arte: o surgimento da porcelana
Há cerca de quinze séculos, uma série de avanços tecnológicos no fabrico de peças de cerâmica permitiu à China desenvolver uma forma de arte que ainda hoje cativa milhões de pessoas ao redor do mundo: a porcelana. Apreciada pelo seu brilho, leveza e sonoridade - uma característica menos óbvia mas que ajuda a distinguir a sua qualidade -, este tipo de loiça rapidamente ganhou a preferência das classes abastadas da sociedade chinesa e, mais tarde, dos centros de poder económico do ocidente, que foram tendo acesso a este novo bem de consumo através do comércio global que a navegação portuguesa impulsionou.
Mas mesmo antes do seu comércio em larga escala, a porcelana já era conhecida no ocidente desde há séculos. Tudo indica que o nome pela qual hoje é designada se deve a Marco Polo, que viajou extensamente pela China entre 1275 e 1291. Ao contactar pela primeira vez com esta singular variedade de loiça, o explorador e mercador veneziano atribuiu o seu brilho e maciez ao emprego, no seu fabrico, de certas conchas que eram conhecidas pelo nome de “porquinhos” ou, em italiano, “porcellane”. Este nome de batismo veio para ficar, mas a verdade é que o ingrediente decisivo para o fabrico da porcelana não eram conchas mas sim o caulino, um tipo de argila branca que, devidamente processada e combinada com outros materiais, como o feldspato, permite obter as características que tornam a porcelana tão apreciada.
Igualmente importante para o surgimento da porcelana na China foi o desenvolvimento de fornos de cozedura que permitiram atingir temperaturas entre os 1200 e os 1400 graus e exercer um maior controlo sobre as mesmas. Esta nova tecnologia viabilizou o aperfeiçoamento do processo de vitrificação, garantindo resultados consistentes no acabamento das peças e homogeneizando os resultados. Estavam reunidas as condições para escalar a produção de um tipo de produto que o mundo começava a descobrir e a cobiçar.
Portugal apresenta a porcelana ao mundo: a ascensão de um mercado
Em setembro de 1499, Vasco da Gama regressava a Lisboa vindo da Índia. Consigo trazia uma variedade de produtos exóticos, entre os quais uma quantidade de exemplares de porcelana que muito agradaram à corte portuguesa. Começava desta forma a introdução do gosto pela porcelana nos mercados europeus. Circulando primeiramente como presente de embaixadores - um hábito aliás iniciado pela própria China -, a presença da porcelana começa a fazer-se sentir no quotidiano de europeus possidentes sob a forma de objetos ligados aos hábitos de alimentação, devoção e sociabilidade. O consumo de chá, café e chocolate, também em ascensão, potenciou a multiplicação de serviços de porcelana.
O prestígio associado à posse de objetos de porcelana começava a originar encomendas de peças brasonadas, não só por parte da nobreza mas também do clero, incentivando ainda mais este comércio. Com a procura em alta, a China rapidamente se especializou em encomendas estrangeiras adaptadas aos respetivos gostos e religiões, sendo ainda hoje frequentes os exemplares de peças com frases e dizeres com erros, uma vez que os pintores-decoradores chineses procuravam apenas imitar os caracteres o melhor que conseguiam, sem entenderem a escrita original.
A procura da porcelana foi tal que esta se tornou a segunda maior exportação da China, ultrapassada apenas pela seda. Claro que a apetência pela porcelana e pelo seu potencial económico levou a que, desde o século XVI, se procurasse no ocidente replicar o seu processo de fabricação, mas os primeiros ensaios bem sucedidos aconteceriam apenas no século XVIII. Só a partir daí começam a ascender os centros europeus de fabrico de porcelana, que cativariam também a sua própria clientela. Mas a produção chinesa estava entretanto tão enraizada no gosto ocidental que permaneceria sempre uma referência estética e, frequentemente, objeto de inspiração e cópia.
Porcelana chinesa: beleza, estatuto e grandes coleções
Desde a produção das primeiras peças de porcelana no século VII, durante a dinastia Tang, até ao século XIX - dinastia Qing -, o processo de fabrico conheceu várias inovações técnicas e a introdução de novos pigmentos, o que se refletiu no aspeto das peças, originando classificações pelas quais os especialistas e aficionados da porcelana chinesa se guiam. Das peças monocromas produzidas nos séculos iniciais, passando pela decoração azul e branca que o cobalto trazido da Pérsia por mercadores árabes possibilitou a partir do séc. IX, até à explosão polícroma da dinastia Qing, com os seus esmaltes vibrantes – as famosas “famílias” - e uma translucidez e mestria pictórica nunca antes alcançadas, o mundo da porcelana chinesa é rico em beleza e variedade.
Associado às suas qualidades estéticas, o estatuto de nobreza que a porcelana confirmava ou emprestava aos seus donos fez com que as peças tivessem tido desde o início fins sumptuários paralelamente aos utilitários. Mas na maior parte das vezes, as duas vertentes fundiam-se numa só: o luxo estava na utilização dos objetos. Naturalmente que, sujeitas a um uso diário, como é o caso dos serviços de refeição, as peças de porcelana tiveram sempre um elevado grau de destruição. Se a produção foi intensa, o seu desaparecimento não foi menos acentuado. Lembremos que até bem dentro do século XX ainda era vulgar os seus proprietários utilizarem estas loiças, se não todos os dias, pelo menos em ocasiões festivas. Há também casos em que a destruição era propositada devido a um conceito de sacralidade régia: em diversas cortes europeias, objetos que tivessem sido utilizados pela realeza não poderiam voltar a servir pessoas de estatuto inferior. Casos menos extremos revelam que a beleza da porcelana podia jogar a favor de uma reutilização decorativa após a descontinuação da sua finalidade original. Foi graças à ideia de utilizar uma série de peças do período Ming para decorar um dos tetos do Palácio Santos, em Lisboa, que se conservou uma coleção única no mundo.
Mas inevitavelmente, a progressiva diminuição das peças mais antigas faz com que o valor da porcelana chinesa suba na proporção inversa. A isto ajudou a ascensão de um colecionismo amador que procura sempre imitar as tendências dos grandes colecionadores. Em Portugal, o há muito adquirido gosto pela porcelana e a privilegiada posição histórica enquanto entreposto comercial, motivaram a disponibilidade de grandes quantidades de exemplares no mercado, permitindo aos museus e a alguns indivíduos financeiramente bem posicionados e com bons contactos no mundo do antiquariato, a constituição de excelentes coleções. De Calouste Gulbenkian a António de Medeiros e Almeida, passando por Anastácio Gonçalves, António Cunha Alves ou Ricardo do Espírito Santo Silva, sem esquecer coleções como a do Museu Nacional de Arte Antiga, verifica-se que, mesmo depois de décadas de êxodo de peças para coleções estrangeiras, o país continua a ser um dos repositórios de referência a nível mundial.
Portugal: um ponto de convergência para a porcelana chinesa
Quando a família real portuguesa se refugiou no Brasil para escapar às invasões francesas, levou consigo toda uma cultura cortesã que incluía, naturalmente, o gosto pela porcelana. Dava-se mais um passo na “diáspora da porcelana”, introduzindo num novo continente, de forma estruturante e não isolada - uma vez que o poder real era, no antigo regime, o modelo de onde emanava o exemplo a seguir pelas classes subalternas -, o hábito de comprar, utilizar e apreciar esta loiça prestigiante.
A globalização protagonizada pelos portugueses significou um intercâmbio cultural com os povos contactados e é justo atribuir à porcelana chinesa de exportação, pela sua constante presença no desenrolar da história do país e pelo papel socioeconómico que desempenhou, o estatuto de um dos maiores símbolos desse fenómeno.
Recentemente, a decisão de instalar em Sintra uma das mais prestigiadas coleções a nível mundial, reunida durante décadas pelo engenheiro brasileiro Renato de Albuquerque, parece configurar um retorno que sugere um magnetismo cultural de Portugal em relação à porcelana chinesa, consentâneo com a preponderância que teve na sua divulgação pelo mundo, e comprovar o gosto de um público eternamente fascinado por essa antiga forma de arte.
As peças reproduzidas neste artigo pertencem à coleção da Casa-Museu Anastácio Gonçalves
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